27 de julho: o Dia da Vitória na Coreia do Norte. Mas que vitória?

O dia de hoje é um dos feriados mais marcantes do calendário da República Popular Democrática da Coreia, representando a assinatura do armistício da Guerra da Coreia, ocorrido há 67 anos em 27 de julho de 1953.

Para o mundo, a data representa somente a assinatura de um armistício de uma guerra inconclusiva e sem vencedores. Para os norte-coreanos, porém, o 27 de julho é pomposamente marcado como Dia da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria.

Esse conflito tem significados diametralmente opostos na Coreia e nos EUA e nos leva a perguntar: se é uma vitória, que vitória? Se foi uma derrota, derrota de quem?

Cenário

A Guerra da Coreia pode ser compreendida em certa medida como um prolongamento do ano de 1945, quando os Estados Unidos desembarcaram tropas na parte Sul da Península Coreana, até então jamais ocupada dessa maneira parcial em sua história. A famosa divisão ao Paralelo 38 levou à formação de um governo fantoche no Sul, controlado diretamente pela administração militar estadunidense e chamado de República da Coreia; já ao Norte, formou-se um governo popular revolucionário chamado República Popular Democrática da Coreia, organizado pelos guerrilheiros que haviam, desde os anos 1930, empreendido luta armada contra os japoneses e que não toleravam a divisão nacional ocorrida a partir da entrada dos ianques no país.

Dois anos correram desde a formação dos dois diferentes Estados e a eclosão da Guerra da Coreia.

O próprio nome do conflito gera uma diferença na interpretação de sua natureza: ao passo que nos EUA e mundo ocidental ele é chamado de Guerra da Coreia, na Coreia do Norte é nomeado de Guerra de Libertação da Pátria.

Guerra de Libertação da Pátria

Para os norte-coreanos, que haviam fundado um Estado revolucionário socialista baseado nos árduos anos de guerrilha anti-colonial contra o Japão (1932-1945), a chegada dos Estados Unidos e sua presença permanente no Sul da Coreia nada mais era do que o prolongamento de uma tutela estrangeira sobre o país.

A interpretação norte-coreana é que no Sul se experienciou uma substituição de imperialismos – saiu o Japão, chegaram os ianques, ao passo que no Norte o que ocorreu foi uma libertação completa, uma vez que os japoneses foram expulsos com sucesso do território e as tropas soviéticas que haviam auxiliado no processo haviam se retirado por completo.

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Cerimônia em Seul, capital da Coreia do Sul, de substituição da bandeira de ocupação do Japão pela dos EUA

Portanto, o conflito iniciado em 1950 nada mais poderia ser como uma genuína Guerra de Libertação Nacional que buscava completar a tarefa de 1945: libertar todo o país de forças externas e construir um Estado socialista de todo o povo.

Guerra de extermínio

As ações dos Estados Unidos da América e a coalizão formada por dezenas de países ocidentais sob a bandeira da ONU na Coreia durante a guerra são hoje intencionalmente esquecidas e mascaradas. O que os ianques chamavam de “bombardeio estratégico” e “cruzada pela liberdade” na verdade traduz-se como guerra de genocídio e violência desmedida.

Os EUA conduziram no teatro de operações uma guerra de extermínio sistematizado dos coreanos. Os bombardeios incessantes de milhares de toneladas de bombas incendiárias atingiram indiscriminadamente alvos civis e militares, arrasando completamente toda e qualquer estrutura no Norte da Coreia: fábricas, casas, fazendas, linhas férreas, estradas, pontes, barragens, portos, etc.

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Destruir qualquer ponto do campo de visão e matar qualquer coisa que se movesse era o lema dos soldados ianques na Coreia

O resultado não seria diferente: milhões de civis foram incinerados em tempestades de fogo causadas pelos bombardeios estadunidenses.

Mesmo assim, os norte-coreanos, Kim Il Sung e o Exército Popular da Coreia jamais vivenciaram um momento de rendição em alguma batalha. Pelo contrário: Kim Il Sung muitas vezes utilizou-se de recuos estratégicos durante os quais reorganizava inteligentemente suas tropas nas florestas e montanhas, empreendendo muitas vezes métodos de guerrilhas.

A população civil também teve papel chave no desenrolar do conflito. Entrega de informações aos inimigos americanos, deserções, delações e colaboracionismos eram raros casos. As pessoas se envolveram em uma segunda linha de frente, a de abastecimento do Exército.

Guerra desesperada

No atual Museu da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria, um dos pontos turísticos obrigatórios a quem vai na Coreia do Norte, é possível ver imensas salas que retratam um lado literalmente oculto da guerra: os complexos subterrâneos cavados nas montanhas. Fábricas, unidades militares e hospitais de campanha – todas as estruturas possíveis foram construídas no coração de colinas, morros, elevados e montanhas para manterem supridas as linhas de frente e abrigar civis. Estratégias desesperadas para amenizar e contornar os bombardeios de superfície em larga escala levados pelos EUA contra uma nação que possuía uma Força Aérea limitada de 2 anos de idade e um povo majoritariamente camponês.

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Fábricas escondidas nas montanhas funcionavam em regime de 24 horas e 7 dias por semana num esforço colossal para manter de pé a resistência nacional

Dia da Vitória

No desenrolar da guerra, os EUA acumularam mais derrotas do que vitórias na Coreia.

Apesar de conseguirem abocanhar boa parte do território da RPDC e até mesmo encostarem na fronteira com a China, os estadunidenses acabaram sendo empurrados para o sul com a entrada das tropas chinesas e pelo ímpeto praticamente inabalável de luta dos coreanos. Mesmo com toda a força das armas de destruição em massa usadas em sobrenatural escala, os EUA falharam em seus principais objetivos: destruir por completo a estrutura e o Estado da República Popular, dinamitar qualquer ação revolucionária, capturar vivo ou morto o seu líder, Kim Il Sung, e chegar às fronteiras da China e da URSS.

Em 27 de julho de 1953, após meses de uma campanha morna na qual poucos avanços foram feitos e novamente com sua linha de frente posicionada abaixo do paralelo 38, os Estados Unidos acabaram por assinar um armistício com a RPDC e o Exército Popular da Coreia.

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Kim Il Sung, a jovem figura desconhecida pro Ocidente na época, foi capaz de obrigar os EUA a assinarem o armistício.

O que depois foi amenizado na mídia e nos manuais de História como “assinatura de uma pausa no conflito” na verdade foi amargamente recebido pelo Exército dos EUA como a primeira ação político-militar da história ianque que não alcançava vitória.

Na Coreia do Norte, a virada do jogo a favor da manutenção do seu Estado e da sua Revolução foi corretamente lido como uma vitória. Afinal, se um lobo empreendesse batalha com um indefeso coelho e esse coelho mesmo assim conseguisse sair sem ser devorado – e ainda humilhando o lobo -, você diria que o coelho era um vencedor ou um perdedor? Por manter-se vivo mesmo em péssimas condições e em desvantagem, o pequeno coelho naturalmente deveria ser agraciado com o título de grande vencedor. Essa analogia explica o que aconteceu no 27 de julho de 1953 para a Coreia Popular.

Guerra Esquecida

O conflito foi de tal maneira devastador para os planos dos EUA na região – planos políticos, geográficos e econômicos – que foi propositalmente esquecido na memória comum americana. Pouco se comentou na época e assim segue até hoje. Quando as tropas voltaram para os EUA, não houve um desfile militar, como tradicionalmente os EUA fazem quando voltam de guerras vitoriosas. Atualmente, a Guerra da Coreia tem nos EUA a alcunha de “Guerra Esquecida”. A derrota sofrida pelo Exército dos EUA e seus comandantes, tal qual Douglas MacArthur, o megalomaníaco que no auge da guerra dizia poder ir a Pequim e Moscou de tanque, foi uma verdadeira pedra na garganta do orgulho e nas ilusões dos EUA que acham ser capazes de tudo.

Guerra Lembrada

Se no Ocidente e nos EUA a matança generalizada que acabou resultando em derrota – como um prólogo fantasma para o que viria a acontecer no Vietnã anos depois – foi intencionalmente esquecida, na Coreia do Norte ela foi e é constantemente lembrada.

Não só é rememorada anualmente no próprio dia 27 de julho, mas também o é por meio da extensa construção de toda uma memória coletiva física – museus, obras de arte, ações de resgate histórico – e imaterial também, já que ficaram para sempre as perdas humanas, os pais que não voltaram para casa, as mães mortas nos bombardeios e os lares que queimaram até o fim.

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O gigantesco Museu da Vitória na Guerra de Libertação da Pátria é um dos maiores e mais belos museus da Coreia Popular

Para se ter uma ideia, até hoje é comum serem encontradas enterradas no solo bombas que caíram e não explodiram na época; alguns casos acabam causando infelizmente a morte de pessoas ou animais.

Esquecer-se desse conflito, que foi abertamente iniciado pelos EUA em sua sede insaciável de poder e destruição de toda e qualquer resistência ao seu domínio, é algo impossível para um norte-coreano.

Contrariando todas as estatísticas numéricas e previsões políticas, os coreanos conseguiram empreender uma verdadeira luta de Davi e Golias, fortalecendo sua unidade nacional contra um invasor estrangeiro voraz e, como disse o bom e velho Mao Zedong uma vez, feito de papel. Como um efeito astronômico, 67 anos depois ainda somos capazes de ouvir o eco dessa guerra na Coreia.

Por isso, dia 27 de julho é o Dia da Vitória do povo coreano na Guerra de Libertação da Pátria, feriado comemorado por todos os povos do mundo como a primeira derrota maestral sofrida pelo imperialismo ianque. A primeira de muitas que aconteceram depois e ainda irão acontecer!

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Lucas Rubio
Presidente do Centro de Estudos da Política Songun – BR

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